“VILA SAPO”
INTERSECÇÕES ENTRE TERRITÓRIO E RESISTÊNCIA NA OBRA DE JOSÉ FALERO
Resumo
O objetivo deste trabalho é verificar a potência da literatura – através do diálogo com a obra “Vila Sapo”, de José Falero – como forma de resistência e luta contra o memoricídio. Para tanto, pretendemos articular um debate entre o conceito de território, memória e as formas culturais de resistência nas comunidades periféricas, demonstrando que, para além das peculiaridades de cada espaço geográfico, as periferias encontram em si semelhanças inerentes às questões socio-históricas que as constituem. Assim, estabelecendo o vínculo entre território, memória e resistência, o trabalho pretende elaborar um estudo sobre o impacto do livro “Vila Sapo” na constituição de uma identidade que não se limite à narrativa dominante do ser negro-periférico-pobre.
A fim de atingir os seus objetivos, o estudo pretende abordar a cultura enquanto resistência levando em consideração o entendimento de Frantz Fanon, quando este refere o esforço do colonizado em desalienar-se culturalmente do discurso hegemônico da cultura que silencia e apaga a sua própria história:
Os esforços do colonizado para se reabilitar e escapar à dentada colonial inscrevem-se logicamente numa perspectiva que é a mesma do colonialismo. [...] O negro que jamais foi tão negro como a partir do instante em que esteve sob domínio do branco, quando resolve dar testemunho da cultura fazer obra de cultura, percebe que a história lhe impõe um terreno determinado, que a história lhe indica um caminho preciso e que lhe cumpre manifestar uma cultura negra. E é bem verdade que os grandes responsáveis por essa racionalização do pensamento, ou pelo menos das tentativas de pensamento, são e continuam sendo os europeus que nunca cessaram de opor a cultura branca às outras inculturas. (Fanon, 1968, p. 176)
Isto é, a partir do momento em que se tem uma cultura hegemônica (do colonizador) que opera pela estratégia do silenciamento dos corpos colonizados, apagando sua história e alienando social e culturalmente estes sujeitos, que se vê a objetificação do negro na sua própria história. Lélia Gonzalez (1984, p. 226) aduz que tal fenômeno pode ser abordado através das noções de consciência e de memória. A primeira trata do encobrimento/esquecimento/alienação do sujeito quanto a história, fator que engloba o discurso ideológico hegemônico como um todo. Já a memória, aduz a autora, funciona como um “não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção”.
Nesse ponto, a autora revela que a estratégia do silenciamento imposta aos negros foi necessária para a sua domesticação e colonização e que estas seguem vigentes até hoje sob o que chama de ideologia do branqueamento, pois esta age com o fim de firmar a dominação através da internalização dos valores brancos ocidentais.
É por aí que a gente entende porque dizem certas coisas, pensando que estão xingando a gente. [...] É por isso que dizem que a gente tem beiços em vez de lábios, fornalha em vez de nariz e cabelo ruim (porque é duro). E quando querem elogiar a gente dizem que a gente tem feições finas (e fino se opõe a grosso, né?). E tem gente que acredita tanto nisso que acaba usando creme prá clarear, esticando os cabelos, virando leidi e ficando com vergonha de ser preta. Pura besteira. Se bobear, a gente nem tem que se defender com os xingamentos que se referem diretamente ao fato da gente ser preta. E a gente pode até dar um exemplo que põe os pintos nos is. (Gonzalez, 1984, p. 234)
Tendo isso em vista, o presente trabalho intentará demonstrar a importância da literatura através da ideia de que, sendo a cultura dominante hegemônica e precedente do apagamento dos negros, das minorias e das comunidades periféricas através, também, da dominação pela linguagem, é necessária a retomada da narrativa pelo olhar do oprimido tomando a escrita – aqui, literária – como forma de sobre(vivência), e entendendo que uma das formas de se exercer autonomia é se apropriar da(s) narrativa(s).
Isso se dá em razão de a literatura, campo de produção humana que possui regras e valores que indicam qual obra deve ou não ser considerada literatura, vinculando-a às técnicas de escrita e linguagem de caráter “culto” e mantendo à margem aquelas que desviam das fórmulas circunscritas a estes campos do saber (Santos Neto, 2021, p. 29-30). Assim, “o texto ou escritor que não estejam sob o referido gosto e que não estejam dentro das normas ou padrões estéticos exigidos e definidos pela tradição literária são categorizados sob a pejorativa rubrica de literatura marginal.” (ibidem, p. 31).
Assim, tendo em vista que a história de resistência das populações pobres, pretas e periféricas sofre um contínuo processo de silenciamento e apagamento, a literatura marginal – como a de José Falero – toma considerável proporção como instrumento de enfrentamento e denúncia da realidade periférica. “A tua vivência é o teu subsídio pra tu escrever.” (Falero APUD Botton, 2019, p. 10). Sobre o tema, em entrevista à André Botton, o escritor refere que:
Eu queria ver o personagem que lava a louça. O personagem que quer ir estudar e não tem passagem, que vai a pé, ou que se ferra com os ônibus lotados. O cara precisando de um trampo e não tem, e tem que alimentar as crianças, como que faz, tá ligado? As coisas que eu vejo aqui na minha realidade eu queria ver isso nos livros e não via. E tudo isso começou a me incomodar, assim, eu pensei: “meu, eu vou começar a escrever!” Aí está, a partir disso nasce o José escritor, o José Falero. (Falero APUD Botton, 2019, p. 3)
Dessa forma, o que observamos é uma atitude de subversão à cultura colocada e a compreensão e apreensão da realidade periférica – a qual Falero está circunscrito – como parte indissociável da sua produção literária. Não só, como o escritor relata que a sua forma de escrita informal também derivou de um processo de reconhecimento do espaço e da sua formação enquanto sujeito. “A forma como eu me expresso, o jeito como eu falo com meus camaradas, minha família, com meus bruxos, era exatamente o que eu tava, sabe, esgoelando na hora de escrever [...]” (Falero APUD Botton, 2019, p. 9).
É deste lugar, portanto, que entender a questão territorial se faz primordial na obra de José Falero, tendo o livro “Vila Sapo” sido escrito em função das vivências do escritor e de seus “bruxos, camaradas e família” da chamada Vila Sapo, comunidade periférica situada no bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre/RS, a qual também o título do livro é dedicado. Isso porque o conceito de território não é retratado apenas através de sua faceta geográfica, como também sociológica e histórica, perpassando, portanto, a constituição do indivíduo e do coletivo que opera em determinadas localidades.
Ao discorrer sobre territórios, o trabalho se utilizará do conceito formulado pelo geógrafo Milton Santos (2006, p. 34) quando refere que o espaço em que o indivíduo está inserido, para muito além de suas fronteiras geográficas, funciona a partir das condições de produção, circulação, residência, comunicação e exercício da política e de crenças. Isto é, as condições geográficas não são o único fator determinante para a constituição de espaço que o indivíduo ocupa. Isso porque, como é possível verificar em qualquer metrópole, não só as facetas geográficas do espaço influenciam na sua composição como também a sua “valorização ou status”, fator que abre caminhos para emergir concepções ideológicas sobre moradores marcados pela pobreza e precariedade. Assim, o processo de estigmatização de populações periféricas reforça a identificação dessas pessoas como indivíduos produtores de violências (Scherer, 2018, p. 252).
Assim, levando em conta o(s) conceito(s) de territorialidade e as peculiaridades de cada território, pretende-se discutir as formas de resistência de uma população circunscrita a determinado local, com enfoque sob como a literatura funciona como propulsor nos territórios periféricos, sobretudo no bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre/RS. Desse modo, o trabalho demonstrará a própria constituição do bairro periférico que forma o cenário da obra a ser analisada, verificando que são nas áreas periféricas que se encontra mais presente a dicotomia “abandono/violência estatal” a qual as populações encontram-se subjugadas (SMC/POA/RS, 2000; Jeronimo et al, 2017; Prefeitura de Porto Alegre, 2004; Melchionna; Becker, 2015).
Como proposta metodológica, utilizar-se-á da técnica de pesquisa bibliográfica bem como da análise de literatura para que, partindo desse diálogo, se verifique de que forma José Falero representa seu entorno através dos contos proporcionados na sua obra “Vila Sapo”, tomando consciência da descrição do próprio autor sobre o cenário escolhido para a obra, o bairro Lomba do Pinheiro, como região “afastada do Centro, fora do alcance dos tentáculos do poder público, abandonada à própria sorte” (Falero, 2020, p. 18).
Downloads
Publicado
Edição
Seção
Licença
Declaro (amos) que a pesquisa descrita no manuscrito submetido está sob nossa responsabilidade quanto ao conteúdo e originalidade, além de não utilização de softwares de elaboração automática de artigos. Concordamos ainda com a transferência de direitos autorais a Revista de Extensão da Unesc.
Na qualidade de titular dos direitos autorais relativos à obra acima descrita, o autor, com fundamento no artigo 29 da Lei n. 9.610/1998, autoriza a UNESC – Universidade do Extremo Sul Catarinense, a disponibilizar gratuitamente sua obra, sem ressarcimento de direitos autorais, para fins de leitura, impressão e/ou download pela internet, a título de divulgação da produção científica gerada pela UNESC, nas seguintes modalidades: a) disponibilização impressa no acervo da Biblioteca Prof. Eurico Back; b) disponibilização em meio eletrônico, em banco de dados na rede mundial de computadores, em formato especificado (PDF); c) Disponibilização pelo Programa de Comutação Bibliográfica – Comut, do IBICT (Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia), órgão do Ministério de Ciência e Tecnologia.
O AUTOR declara que a obra, com exceção das citações diretas e indiretas claramente indicadas e referenciadas, é de sua exclusiva autoria, portanto, não consiste em plágio. Declara-se consciente de que a utilização de material de terceiros incluindo uso de paráfrase sem a devida indicação das fontes será considerado plágio, implicando nas sanções cabíveis à espécie, ficando desde logo a FUCRI/UNESC isenta de qualquer responsabilidade.
O AUTOR assume ampla e total responsabilidade civil, penal, administrativa, judicial ou extrajudicial quanto ao conteúdo, citações, referências e outros elementos que fazem parte da obra.