DIREITO HUMANO AO CUIDADO

PROTEÇÃO DA VIDA DIGNA NA FIXAÇÃO JUDICIAL DE ALIMENTOS NO DIREITO DE FAMÍLIA

Autores

  • Eduardo Cambi
  • Luiza Ling

Resumo

O trabalho destina-se à defesa do Direito Humano ao Cuidado, enquanto componente do Princípio da Dignidade Humana, bem como da possibilidade de que tal direito seja utilizado como parâmetro na fixação de alimentos no Direito de Família.

Ninguém pode ser obrigado obrigar a amar outrem, nem mesmo sua prole. Porém, a relação parental está baseada além do sentimento, uma vez que envolve responsabilidades e, por isso, configura-se como fonte de obrigações jurídicas (Pereira, 2023, p.396).

O Direito ao Cuidado decorre da noção de que o ser humano necessita, além de alimentos, também de outras condições materiais e imateriais básicas (como saúde, educação, moradia, lazer etc.) para uma vida digna.

O cuidado, como expressão humanizadora (Pereira, 2008, p. 309), preconiza que as pessoas precisam de amparo para se desenvolverem integralmente.

A percepção do valor jurídico do cuidado pode ser extraída do artigo 227 da Constituição Federal, que prevê o dever da família, da sociedade e do Estado em assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais.

Afirmar a existência do direito humano ao cuidado significa que há razões suficientes para que outras pessoas tenham deveres em relação àqueles titulares dos direitos. A maternidade e a paternidade são funções sociais que impõem deveres jurídicos de cuidado dos filhos. Logo, enquanto o amor diz respeito à motivação subjetiva, o cuidado é caracterizado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação de seu cumprimento que exsurge da avaliação de ações concretas. Conforme precedente do Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial nº 1.159.242-SP), amar é faculdade, cuidar é dever (Brasil, 2012).

Nos conflitos envolvendo Direito de Família – sobretudo nas ações de guarda e alimentos – após a separação do casal, o Poder Judiciário fixa (1) a guarda compartilhada, como regra, com a designação de lar de referência de um dos pais e (2) alimentos a serem pagos em benefício dos filhos e/ou do ex-cônjuge/companheiro. Entretanto, ao se decidir essas situações, muitas vezes, não se leva em consideração a perspectiva de gênero, isto é, se ignora o fato de que praticamente a integralidade do cuidado da prole é realizada pela mulher.

Portanto, na tentativa de contribuir com o enfrentamento da desigualdade estrutural de gênero, pretende-se com este trabalho defender que o efetivo cuidado das crianças e dos adolescentes deve ser considerado no arbitramento dos alimentos: (1) no caso de ex-cônjuges ou ex-companheiros, quando restou demonstrado que a mulher deixou ingressar no mercado laboral ou reduziu sua carga horária, porque ficou ou está no exercício do trabalho doméstico não remunerado; e (2) aos filhos, relacionando-se ao fator da proporcionalidade, o que significa que a mãe contribuirá com valor inferior de alimentos (ou sequer precisará pagá-los) porque todo (ou a maior parte) o cuidado destinado à prole recai sobre ela.

O trabalho de cuidado e a desigualdade de gênero relacionam-se historicamente, fortalecendo uma questão de desigualdade estrutural. De acordo com o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (CNJ, 2021), historicamente, na sociedade capitalista, atribuiu-se aos homens o trabalho produtivo, que se dá na esfera pública, é remunerado, tem reconhecido valor social e por meio do qual se obtém renda para corresponder ao papel do gênero masculino de provedor. Paralelamente, naturalizou-se o ideário patriarcal de ser a mulher a responsável, única ou prioritariamente, pelo trabalho reprodutivo, ou de cuidado (remunerado e não remunerado), isto é, o trabalho de manutenção da vida e de reprodução da sociedade.

O cuidado não se limita ao âmbito moral da preocupação; é tarefa que exige atitudes e ações concretas (Schaitza, 2024, p. 94). A complexidade do cotidiano de lavar roupas, programar, comprar, preparar refeições, higienizar o ambiente, levar a consultas médicas, dentre outras práticas que precisam ser feitas, configuram-se como trabalho de cuidado e são, prioritariamente, de responsabilidade do pai/mãe que detém a guarda efetiva da criança e do adolescente.

Aliás, até o trabalho mental das mulheres em organizar o funcionamento da casa, a rotina dos filhos, idosos ou outras pessoas que dependam de cuidado familiar, tende a ser esquecido ou menosprezado quando se fala apenas em trabalho doméstico. Isso contribui para a feminização da pobreza.

O trabalho de cuidado tem dupla dimensão. Na esfera do espaço privado doméstico, pode ser realizado de forma gratuita ou remunerada. Neste último caso, por profissionais como empregadas domésticas, babás, cuidadoras e diaristas. Independentemente do espaço (na esfera pública ou privada) e da forma (remunerado ou não) pela qual o trabalho de cuidado é desenvolvido, ele é predominantemente realizado por mulheres e, em geral, desvalorizado e invisibilizado.

Portanto, é preciso valorizar o trabalho de cuidado não remunerado da mulher, mesmo quando elas trabalham fora de casa, para minimizar os efeitos da sobrecarga gerada com a dupla/tripla jornada (Brasileiro, 2021). É possível, por meio da aplicação do Direito de Família com perspectiva de gênero, diminuir a falta de isonomia existente entre homens e mulheres no desempenho das obrigações familiares.

O trabalho doméstico de cuidado – realizado sobretudo pelo responsável pela residência de referência da criança e/ou adolescente, que normalmente é a genitora – deve ser um parâmetro a ser levado em consideração pelo Estado-Juiz na justa fixação do montante a ser pago a título de alimentos. Dessa forma, é possível presumir (presunção iuris tantum) a necessidade de alimentos – ainda que de forma transitória - para a ex-cônjuge ou ex-companheira que se dedicou ao trabalho doméstico não remunerado (e, portanto, não possui autonomia financeira para ter uma vida digna) até que possa se recolocar no mercado de trabalho. Além disso, o trabalho doméstico de cuidado da mulher com a prole (quando o lar de referência for materno, na guarda compartilhada, ou estiver com a guarda unilateral dos filhos) pode ser considerado no fator proporcionalidade, do trinômio alimentar necessidade-possibilidade-proporcionalidade, no arbitramento do quantum da prestação alimentícia.

Afinal, quando se desconsidera, no âmbito de análise processual, as particularidades de um caso em que se percebe um trabalho doméstico de cuidado não remunerado, desempenhado exclusivamente pela mulher, ignora-se a realidade social e diminui-se a importância da maternidade, por meio de uma suposta neutralidade jurídica, o que compromete a imparcialidade e a justiça da decisão judicial.

Nesse sentido, é importante destacar a jurisprudência que vem sendo construída pela 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, a partir da aplicação do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça.

A especialidade temática da Câmara abre espaço para outras formas de pensar, compreender e julgar, fazendo com que seja possível a construção de novos paradigmas em que a mulher – e o cuidado (indispensável à manutenção da vida) – seja valorizada.

Por meio da análise empírica de conflitos familiares que chegam cotidianamente ao Poder Judiciário, somado à necessidade de se construir precedentes com perspectiva de gênero, é que se conclui pelo reconhecimento do Direito Humano ao Cuidado enquanto componente da categoria Dignidade Humana, o que facilita a sua identificação como parâmetro a ser aplicado pelas juízas e juízes na justa fixação da prestação alimentícia.

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Publicado

2024-12-12