UMA ANÁLISE DA RESOLUÇÃO DOS LITÍGIOS EM PASÁRGADA

Autores

  • Wiliam de Mello Shinzato

Resumo

A pobreza e a desigualdade social sempre foram fatores que impedem ou dificultam o acesso à justiça das camadas marginalizadas da população brasileira, assim como as políticas públicas de acesso à justiça também sempre se mostraram insuficientes para reverter o quadro de forte assimetria e obstáculos. Diante desse contexto, tem-se como tema deste trabalho a obra “O direito dos oprimidos” de Boaventura de Souza Santos cujo objeto de estudo é o sistema paralelo de resolução de litígios criado por comunidades urbanas oprimidas, que o direito oficial não alcança. No caso, o contexto de estudo foi Pasárgada, nome fictício para designar a favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro, na qual devido à inacessibilidade ao sistema jurídico estatal, as classes populares desenvolveram estratégias adaptativas para estabelecer uma ordem social mínima, dentre as quais uma ordem jurídica interna para prevenir e resolver conflitos, o que será a delimitação deste trabalho. Como objetivo geral, do presente resumo expandido, propõe-se a analisar o sistema jurídico interno de Pasárgada e, como objetivos específicos, propõe-se identificar o trâmite da resolução de conflitos internos, bem como analisar a eficácia, enquanto alternativa oficial, para a realização da justiça. Para tanto, será utilizado o método dedutivo, por meio de pesquisa bibliográfico a partir da obra “O direito dos oprimidos”.

O direito de Pasárgada foi analisado de dentro (através da análise sociológica da retórica-jurídica utilizada na prevenção e na resolução de litígios pela associação de moradores) e nas suas relações desiguais com o sistema jurídico oficial brasileiro, a partir da perspectiva do pluralismo jurídico, motivo pelo qual citamos Wolkmer (2006, p. 120), para quem deve se considerar a interculturalidade que permite “o reconhecimento de outra cultura jurídica, marcada pelo pluralismo de tipo comunitário-participativo e pela legitimidade construída através das práticas internalizadas de sujeitos sociais”.

O estudo foi feito a partir da prevenção e resolução de conflitos operadas na Associação de Moradores de Pasárgada. Boaventura socorreu-se da sociologia e da teoria das classes para analisar esta instância de pluralismo jurídico, centrando-se nas relações entre um sistema jurídico subalterno, criado pelas classes populares para resistirem ou se adaptarem à dominação de classe, e um sistema jurídico dominante criado pelas classes dominantes para assegurar a reprodução dos seus interesses.

A hipótese geral da obra é que o discurso argumentativo (retórica) é a principal componente estrutural do direito de Pasárgada e que, por isso, domina os processos e os mecanismos de prevenção e resolução de litígios existente em Pasárgada. A análise retórica do discurso jurídico faz da linguagem a realidade nuclear do processamento do litígio. No entanto, podem também considerar-se importantes argumentos não verbais como gestos, atitudes, bandeiras, mobiliário, etc. As palavras não são trocadas enquanto palavras, mas enquanto portadoras de significados (Santos, 2014, n.p). Feitas essas considerações, passa-se a analisar as formas e procedimentos do ordenamento jurídico interno de Pasárgada.

A Associação de Moradores (doravante denominada AM) de Pasárgada é a “instituição” mais importante para a resolução de conflitos (embora houvesse outras). Os moradores recorrem à AM quando desejam organizar trabalho comunitário para construir ou reparar as suas casas ou barracas, ou quando entendem que deveriam obter autorização para as reparar ou alargar, ou quando pretendem celebrar (ou rescindir) um contrato a elas respeitante, ou ainda quando têm um litígio com vizinhos sobre direitos de construção, demarcação de propriedade, direitos de passagem ou de ocupação (Santos, 2014, n.p).

O procedimento para entrar com qualquer tipo de relação jurídica na AM é o seguinte: 1º) As partes explicam as suas intenções; 2º) Depois de o contrato ter sido datilografado, o presidente lê o texto às partes, que o assinam na sua presença, juntamente com as duas testemunhas; 3º) O presidente apõe, então, no documento, os carimbos da Associação; 4º) Cada uma das partes recebe uma cópia, ficando uma outra arquivada na Associação. A esta intervenção da AM na criação e extinção das relações jurídicas, Boaventura chama de ratificação. Através dela, a AM contribui para a prevenção de litígios em Pasárgada (Santos, 2014, n.p).

A ratificação é um ato constitutivo em dois sentidos: 1º) a AM pode propor alterações; e, 2º) é entendida pelas partes como uma fonte autônoma de segurança para a relação entre ambas. Trata-se de um ato de retórica institucional, uma institucionalização persuasiva das formas e dos procedimentos concebidos como argumentos tópico-retóricos. Trata-se de um processo de reinstitucionalização, no sentido de que as formas e os procedimentos correntes são integrados numa totalidade institucional que os investe de normatividade e persuasão reforçadas. Esta institucionalização está intimamente ligada à atmosfera de oficialismo que rodeia a AM (Santos, 2014, n.p).

Souza Santos analisa as formas que constituem o processo de ratificação: 1º) Artefactos: O edifício e o mobiliário da AM; 2º) Interrogatório: a principal função é a AM reafirmar sua jurisdição; 3º) Elaboração do contrato; 4º) Redação: Souza Santos julga que em Pasárgada o topos da palavra escrita domina o da palavra falada; 5º) Leitura, que é a manifestação plena da dialética da autonomia e da alienação; 6º) Assinatura: O momento da assinatura representa a polarização máxima entre promitente e promessa; 7º) Testemunho: As testemunhas representam o consenso social, e conferem uma aura de perenidade e de tradição ao contexto normativo no seio do qual o acordo individual se deve integrar.; 8º) Aposição de carimbo, que simbolicamente manifesta a criação da normatividade contida na relação; 9º)  Arquivamento: As partes não levam o documento consigo, sendo este “enterrado” (Santos, 2014, n.p).

Da análise dos casos examinados por Boaventura, denota-se que o discurso moral tende a dominar o discurso jurídico, e a sua orientação tópico-retórica visa criar um argumento persuasivo a favor da legalidade da ação empreendida, realçando, desse modo, a segurança da relação daí resultante. As formas jurídicas de Pasárgada são consistentemente instrumentais, orientadas para as finalidades substantivas que pretendem servir. O direito de Pasárgada é flexível em relação ao formalismo e rígido em relação à ética. A relativa autonomia do formalismo de Pasárgada sugere que se está perante um sistema de formalismo popular e uma linguagem técnica popular. O processo de ratificação centra-se no documento escrito que certifica a transação jurídica.

O procedimento para a resolução de litígios em Paságada segue o seguinte rito: 1º) o queixoso dirige-se à Associação e explica o seu problema; 2º) é realizada uma audição preliminar do caso; 3º) quando a Associação aceita o caso, é enviado um convite escrito para o arguido, pedindo-lhe que compareça na AM; 4º) o queixoso é informado de que também deve estar presente; 5º) o presidente pode inspecionar o local; 6º) se o arguido não responder, podem-se utilizar outros meios, como a intervenção pessoal do presidente, de um amigo do demandado ou até da polícia (Santos, 2014, n.p).

Já a audiência funciona da seguinte forma: 1º) as partes podem fazer-se acompanhar na audiência por amigos, parentes ou vizinhos; 2º) o presidente conduz as partes para o local da audiência; 3º) geralmente, o queixoso é o primeiro a falar, seguindo-se-lhe o arguido; 4º) depois disso, o presidente interroga as partes; e, 5º) por fim, o presidente toma uma decisão (Santos, 2014, n.p).

Denota-se, portanto, que se está diante de um pluralismo jurídico interclassista. Ao ocupar-se dos conflitos entre as classes oprimidas, o direito de Pasárgada não só liberta os tribunais oficiais e os gabinetes de assistência jurídica do fardo de ter que atender os casos das favelas, mas também reforça a socialização dos habitantes de Pasárgada numa ideologia jurídica que legitima e consolida a dominação de classe. Ao fornecer aos moradores de Pasárgada uma forma pacífica de resolução e de prevenção dos litígios, o direito de Pasárgada neutraliza, em parte, a violência da sociedade capitalista (Santos, 2014, n.p).

Destaca-se também que o direito de Pasárgada é acessível.  Os moradores de Pasárgada não pagam honorários aos advogados nem custas nos tribunais. Não têm de pagar transportes nem de perder um dia de salário. Os casos são julgados sem grandes demoras. As pessoas não se vestem de uma forma diferente para ir à AM, nem se entregam a auto-apresentações ritualistas, e usam a linguagem corrente para transmitir os fatos, as posições e os argumentos do caso (Santos, 2014, n.p).

O nível de participação e a informalidade do processo jurídico estão intimamente relacionados e ambos são elevados. O caso é apresentado pelas partes, às vezes com o auxílio de parentes ou vizinhos. A mediação é o modelo dominante da resolução de litígios. Procura-se sempre chegar a um compromisso em que cada parte cede um pouco e recebe um pouco (Santos, 2014, n.p).

Essa situação é uma alternativa eficaz à realidade da justiça brasileira que: “em relação aos pobres, o judiciário segue sendo uma instituição de portas fechadas e inacessíveis, reprodutora de injustiças” (Rebouças; Novaes; Marques, 2020, p. 125).

Denota-se que que a forma de resolução de conflitos em Pasárgada satisfez as necessidades da população local, considerando, principalmente o abandono histórico e as intensas barreiras para o acesso à justiça, o que se agrava com o regime ditatorial vigente no país à época do estudo realizado por Souza Santos. Conforme Dias e Rodrigues (2014, p. 429): “se trata de “uma tarefa progressista” [...] e uma estratégia contra a opressão classista [...], a tentativa de desvencilhar-se do indiferente direito oficial em vigor ao criar mecanismos próprios que atendam às práticas sociais, costumes e ética locais”.

Downloads

Publicado

2024-12-12