DIREITO À MEMÓRIA SOBRE VIOLÊNCIAS DE ESTADO
ANÁLISE COMPARATIVA BRASIL-ARGENTINA
Resumo
A América Latina possui um forte histórico de participação e intervenção militar em seus regimes políticos, estabelecendo problemáticas relações cívico-militares. Essa presença militar na política dos Estados latino-americanos remonta-nos, em geral, às ditaduras (civis)militares entre as décadas de 1960 e 1980, caracterizadas pela violência de Estado e pelos atentados aos direitos humanos, que marcaram profundamente as nossas sociedades, que sofrem com seu legado traumático, mesmo após processos de transição política e redemocratização (Lafer, 2012; Fico, 2012). Uma dessas marcas no nosso subcontinente é a permanência da capacidade militar de intervir politicamente como força estabilizadora (Kruijt; Koonings, 2002), ainda que de formas diversas em cada país. Sendo a principal função das forças armadas a manutenção da integridade territorial estatal, especialmente em disputas internacionais, os grupos militares latino-americanos – e especialmente sul-americanos –, frente a ausência de conflitos interestatais, voltaram sua atuação para o contexto nacional, para conflitos entre civis (Villa; Pimenta, 2016). Nesse cenário, os múltiplos arranjos das relações cívico-militares em cada Estado refletem, dentre outras coisas, seus processos de construção e manutenção de políticas de memória e verdade sobre os atentados aos direitos humanos efetuados nesses regimes e o julgamento das forças militares pós-regime ditatorial. Tais políticas buscam trazer, de alguma forma, justiça às suas vítimas e reparação aos familiares, de maneira que "[...] a memória é um direito humano porque a sua ausência responde, em grande parte, pela perpetuação ou repetição dos atos de violência e de barbárie já vistos no passado e, portanto, pela multiplicação das vítimas" (Bragatto; Paula, 2011, p. 133). Quando tratamos de construção de memória, as Comissões de Verdade[1] se destacam como um dos elementos mais importantes para que se reconheçam e se tornem públicas as infrações aos direitos humanos feitas durante os períodos ditatoriais latino-americanos. Apesar de não terem poder de decidir sobre o que seria feito com as informações, as Comissões puderam recomendar julgamentos ou anistias, além de propor políticas de reparação e memória (Fico, 2012), mesmo que, em grande parte dos países, as recomendações não tenham sido seguidas (Pinto, 2010). Dessa forma, houve países que julgaram e puniram os militares envolvidos, como a Argentina, mas em outros países, como o Brasil, as políticas de justiça ficaram limitadas por leis de anistia assinadas durante os governos (civis)militares ou posteriormente a eles, permitindo a impunidade dos responsáveis (Pinto, 2010; Paula, Vieira, 2020). Essas diferenças de tratamento dado por esses dois países às infrações aos direitos humanos cometidas durante esse período influenciaram as suas relações com seus militares nas décadas posteriores, persistindo até os dias atuais. Frente a isso, objetivamos, nesta pesquisa, realizar uma análise comparativa entre a construção das políticas de memória, verdade e justiça sobre as ditaduras civis-militares brasileira e argentina – partindo da sua relação com os direitos humanos –, bem como seus impactos na construção de imaginários socioculturais e dos etos[2] dos militares nesses países, uma vez que sua presença ao longo da história dos países latinoamericanos é marcadamente forte. Para tanto, realizaremos um levantamento bibliográfico sobre a história política e social desses regimes e sobre os processos de construção de memórias sociais. Ademais, faremos uma análise comparativa da situação política atual do Brasil e da Argentina, buscando compreender seus processos de (des)militarização estatal. Nossos resultados apontam que as políticas de memoria, verdad y justicia são fundamentais para as diferenças entre a (des)militarização dos dois países. Nesse sentido, além da adoção tardia e insuficiente desse tipo de política, o Brasil manteve fortes relações políticas com militares, ampliando seu processo de militarização estatal por meio da administração pública e pela eleição para o executivo e o legislativo, sobretudo durante o governo Bolsonaro. Já no caso da Argentina, houve – por meio da pressão e luta dos organismos de direitos humanos e da sociedade civil organizada –, desde o período de transição democrática, medidas instauradas como política de Estado e que geraram uma maior consolidação da separação do papel dos militares da gestão política. Todavia, com assunção, em 2023, do governo Lula no Brasil e Milei na Argentina, observam-se mudanças significativas nas políticas de memória e nos processos de militarização. O processo de militarização brasileiro parece ter diminuído, mas não encerrado, ao mesmo tempo em que há uma política do Executivo para não rememorar o período ditatorial, visando uma conciliação do governo com setores militares, especialmente após a tentativa de golpe de Estado em 08 de janeiro de 2023. Essa política de negar a memória é contraditória com as ações do PT em governos anteriores, que instituíram as Comissões Nacionais da Verdade no país, quando quem estava à frente do executivo era a ex-presidenta Dilma Rousseff, figura emblemática por ter sido guerrilheira opositora do regime ditatorial e ter sofrido na pele as violências do mesmo. Essa mudança de direção do Executivo na atualidade reflete mais uma vez a capacidade de interferência dos militares nas políticas do país, destacando que para governar, o executivo necessita do apoio ou ao menos de uma relação de pouca tensão com as forças armadas. Porém, o custo de promover o apagamento da memória em nome dessa conciliação se mostrou muito alto durante todos os anos que se seguiram após a ditadura, e seguir ignorando as infrações aos direitos humanos cometidas no período se mostra como uma retroalimentação da complexa e conturbada relação com o setor militar brasileiro.Na Argentina, apesar de, em 2024, a Justiça do país ter condenado ex-agentes da ditadura militar por crimes cometidos no regime, o atual governo tem dado diversas declarações revisionistas sobre esse período, e vem utilizando medidas repressivas especialmente contra setores da sociedade civil cuja história remonta à oposição à ditadura. Além dessas medidas, durante o mandato do atual presidente Javier Milei, está sendo realizado um processo de desmonte e enfraquecimento de políticas e instituições representativas da luta por memória, verdad y justicia, como é o caso do cancelamento do programa Madres de La Plaza da televisão pública do país (Comunicacion Madres, 2024), ou a ameaça de retirada de financiamento para a busca de netos e desaparecidos do regime, uma política de reparação fundamental, por promover o reencontro de diversas pessoas com as suas famílias e esclarecer suas histórias (Lorca, 2024). Destaca-se também o posicionamento dos aliados do executivo com relação ao regime, como no caso dos deputados do partido La Libertad Avanza que foram à prisão visitar conhecidos torturadores do período ditatorial (Martino, 2024). A visita, que gerou muita polêmica, evidencia a tolerância e cumplicidade que os aliados do atual presidente demonstram com as infrações aos direitos humanos cometidas no período. Dessa forma, a presença e a ausência de políticas de memória no Brasil e na Argentina, tal como a rapidez ou o atraso em suas implementações e o teor das medidas tomadas, geraram e geram importantes implicações em cada país, na relação atual com os militares, com a memória e com o respeito ou não aos direitos humanos. Porém, estas políticas não são fixas e têm sua sobrevivência, ampliação e diminuição relacionadas com as decisões e os caminhos adotados por cada governo. Frente a realidade atual dos dois países, nossa análise indica que os processos de construção de memória e de desmilitarização dependem tanto de movimentações da sociedade civil quanto de políticas de governo imediatas e de longo prazo, estas últimas precisando de manutenção e extensão para se institucionalizarem como políticas de Estado e manterem a memória, o respeito aos direitos humanos, e consequentemente os princípios democráticos presentes na sociedade.
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