UMA ANÁLISE HISTÓRICO-CRÍTICA DA POLÍTICA NACIONAL DE GESTÃO TERRITORIAL E AMBIENTAL DE TERRAS INDÍGENAS (PNGATI)
Resumo
A partir da composição temática entre Pluralismo Jurídico Comunitário-
Participativo e Bem Viver, na busca pelo aprofundamento da compreensão teórica da realidade brasileira desde os povos originários e suas dificuldades e necessidades, a investigação se inicia motivada por indícios de cooptação dos discursos e das práxis que gravitam as pulsões de comunicação diatópica das comunidades indígenas, em seus movimentos de interpelação à sociedade e ao Estado por garantias e ampliação de sua dignidade, enquanto uma pluralidade complexa de nações que coabitam o Brasil, mas são renitentemente invisibilizadas pela cultura hegemônica por meio de um arsenal multifacetado de operações que em vários níveis distintos contribuem para a marginalização dessas pessoas e para o apagamento, fetichização ou monetarização de suas culturas. Nesse sentido, o problema orientador desse trabalho consiste em analisar criticamente essas investidas do Estado sobre o modo de vida dos povos indígenas, desde um direito epistemologicamente descolonizado. Buscou-se num primeiro momento identificar os valores jurídicos, políticos e sociais que permeiam os objetos de pesquisa e que contribuíram, direta ou indiretamente, para a qualificação da luta insurgente indígena por reconhecimento, respeito, dignidade, território e autonomia política e jurídica, para que fosse estabelecido um horizonte materialmente conectado à uma racionalidade transformadora, substantiva, preocupada com a humanidade, mas também com a mesma intensidade conectada com a Natureza, como um só, indistinguíveis e sob uma conexão indelegável, impostergável e condição de uma vida digna a partir de um referencial epistemológico próprio, original e autenticamente brasileiro, latino-americano, que integra o amplo conceito cunhado nos Andes de Bem Viver. Num segundo momento foi possível averiguar que o discurso que integra o iter da formulação normativa até a sua positivação enquanto Decreto 7.747/2012 possui elementos que coincidem com as pretensões de uma abordagem descolonial, como a) respeito às manifestações culturais em sentido amplo (uso, costumes, línguas, tradições, etc.); b) protagonismo e autonomia sociocultural; c) reconhecimento da relevância do indígena para a conservação da Natureza; d) proteção territorial; e) governança e participação indígena. Não obstante, existem outros elementos que são determinantes para a leitura da integralidade do discurso como sensibilizado àquele próprio do desenvolvimentismo Moderno, tais como a) recuperação e conservação da agrobiodiversidade; b) promoção e regulação ambiental de atividade e empreendimentos instalados no interior de terras indígenas; c) uso sustentável de recursos naturais e iniciativas produtivas indígenas; d) fortalecer e promover as iniciativas produtivas indígenas, com o apoio à utilização e ao desenvolvimento de novas tecnologias sustentáveis; e) apoiar e promover o artesanato para fins comerciais; f) atividades econômicas e produtivas não tradicionais; g) apoiar iniciativas de etnoturismo e ecoturismo; h) criação de animais de médio e grande porte; i) certificação de produtos dos povos e comunidades com identificação da procedência étnica e territorial e da condição de produto orgânico; j) apoiar e valorizar as iniciativas indígenas de desenvolvimento de pesquisa, criação e produção etnocientífica e tecnológica, para possibilitar inovação e fortalecimento de base econômica, social e ambiental. Essa cooptação do discurso normativo pelo desenvolvimentismo ultrapassa o PNGATI e se espraia na execução dos PGTA, colocando sempre um fator econômico-comercial como um objeto ou objetivo a ser perseguido pela comunidade. Fora considerado, num terceiro momento, que essa abertura das comunidades indígenas ao comércio exógeno não pode ser negada de pronto, exatamente porque é a abertura epistemológica a marca própria do conceito de Bem Viver, o que lhe legitima à uma aspiração universal de pluralidade, sendo um ponto chave para o pensamento econômico de Acosta (2016), todavia, não deve ser ignorado que essa convergência merece toda a atenção acadêmica, carecendo de estudos posteriores para melhor compreensão do fenômeno como simultânea preocupação com a materialidade da autonomia e autodeterminação indígena. Ao fim, conclui-se pela recomendação de alerta, na medida em que, apesar de uma historicidade milenar de trocas comerciais, com o amplo reconhecimento da comunidade científica decorrente dos achados arqueológicos a confirmar estas hipóteses (HASSIG, 2013), há, para com o comércio de matiz capitalista, um abismo epistemológico. Como nos revela Mariana Ferreira (1993), o comércio indígena entre os Kayabi, Juruna e Suyá, está embasado em princípios de reciprocidade, que acabam por estruturar de maneira elementarmente diversa o raciocínio aritmético, permitindo a atribuição de valores epistemologicamente plurais, divergentes da matemática sob o paradigma hegemônico, de forma que o senso de coletividade e comunitarismo expressado nas trocas de produtos entre elas pouco se assemelha ao antropocentrismo individualista que decorre de uma sociedade essencialmente monetária em sua historicidade que a fez, portanto, acumuladora e egoísta em sua raiz, o que coloca essas culturas em lados opostos de um abismo cosmogônico. A maior atenção deve se dar ao fato de que o capitalismo, sob o modelo paradigmático ocidentalizado e norte-eurocentrado, é um valor autorreferencial, produzido e promotor da racionalidade formal que informa a epistemologia ontológica Moderna, que opera na dominação sobre o outro e que necessariamente precisa se expandir para ser viável. Nesse sentido, mais que suficiente para provocar possíveis disrupções a sério num devir marcado por cosmopercepções iniciadas e voltadas para a harmonia entre os seres humanos e o meio ambiente, merecendo a cautela da comunidade científica.
Assim, partir de uma abordagem ana-dialética (DUSSEL, 1995; 2012; 2016) e de procedimento histórico-crítico (WOLKMER, 1999; 2005), esta pesquisa se propôs a uma análise teórica descolonizadora (CAOVILLA, 2016) sobre um arcabouço referencial interdisciplinar e por uma pesquisa bibliográfica e documental sobre os movimentos sociais que integram o pano de fundo deste dispositivo legal, desde o momento pré-normativo até a execução da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI – Decreto 7.747/2012) por meio dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental de Territórios Indígenas (PGTA), assim como documentos que gravitam o tema, como as Orientações para Elaboração de Planos de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (FUNAI, 2013), sem se furtar a análise de artigos científicos, dissertações, teses, matérias jornalísticas, entre outros que se revelaram necessários à documentação de uma realidade secularmente marginalizada, que não raro apenas encontram espaços para sua voz em mídias não hegemônicas, preocupação que não passou despercebida.
Ao fim, restou caracterizado que o Estado brasileiro tem, de fato, ativamente promovido a participação das comunidades indígenas no mercado, sob uma perspectiva desenvolvimentista em sua modalidade “sustentável”, de tal forma que emerge um dever jurídico-crítico de compreensão desse movimento, já que pode levar a consequências capazes de operar transformações subjetivas e objetivas irreparáveis. O panorama teórico analisado permitiu, então, a dedução crítica de uma questão ética mais complexa: “em que ponto a inserção das comunidades indígenas no mercado capitalista provocaria a ruptura estrutural com as premissas do Bem Viver?”. Preocupação que pode ser posteriormente aprofundada pela ciência enquanto dever ético de cuidado com a materialidade dos povos originários, agora, ameaçados em um novo nível de opressão.
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