JUDICIALIZAÇÃO EM MASSA E O PROCESSO ELETRÔNICO

ENTRE A MODERNIZAÇÃO DA JUSTIÇA E OS RISCOS DE UM PROCESSO KAFKIANO

Autores

  • Rafael Carvalho Ribeiro

Resumo

Os avanços tecnológicos das últimas décadas alcançaram os mais diversos setores sociais, incluindo o Poder Judiciário, e trouxeram notáveis ganhos e avanços. Ocorre que a realidade do processo eletrônico, associada à judicialização em massa e às novas tecnologias de softwares de inteligência artificial capazes de auxiliar na elaboração de petições e mesmo no julgamento das demandas, representa um desafio na manutenção do fator humano na seara processual. Isto porque as novas tecnologias não são uma tábua de salvação capaz de suprir as deficiências do acesso à justiça quando nos deparamos com um Estado moroso e historicamente deficiente na efetiva salvaguarda dos direitos fundamentais. Também aí se apresenta o desafio de conviver com a realidade neoliberal de busca desenfreada dos ganhos econômicos e da produção numérica e estatisticamente aferível que alcança todos os setores sociais e a própria Justiça. Neste sentido, as novas tecnologias podem acabar promovendo maiores tumultos processuais quando favorecem a padronização demasiada e afastam as particularidades do caso concreto, promovendo um acesso à justiça deturpado ao jurisdicionado ou, ainda, afastando-o fisicamente dos tribunais, especialmente quando não tem domínio dos recursos digitais. A pandemia da COVID-19 no início de 2020 forçou, ao menos temporariamente, o fechamento dos fóruns em toda a nação, com a suspensão dasaudiências e do atendimento presencial. Foi nesta oportunidade que se acelerou a digitalização dos processos nos tribunais que ainda possuíam autos físicos, bem como foi instituído pelo CNJ o atendimento através dos balcões virtuais. Mais do que isso, as audiências por videoconferência se tornaram a realidade dominante. Todo esse cenário, entretanto, não foi acompanhado do aprimoramento da estrutura de atendimento às pessoas, especialmente aquelas que litigam sem advogado, a despeito dos Juizados. A hipótese desta pesquisa diz respeito ao fato do livro “O Processo”, de Kafka, ser um modelo adequado para se tentar compreender a realidade de alienação que parte significativa dos jurisdicionados enfrenta na Justiça, especialmente os não incluídos digitalmente, a qual vem se agravando com a virtualização e o aumento da automação. A pesquisa é documental e bibliográfica e o método adotado neste trabalho é o hipotético-dedutivo, analisando o problema à luz da hipótese apresentada e diante do contexto fatual.  A obra “O Processo” é capaz de permitir, a partir do viés da Justiça Poética defendida por Martha Nussbaum (1995), um processo de reflexão transformador sobre o mundo jurídico e a deliberação de critérios mais igualitários, inclusive para a sistematização e o processamento das automações. Tudo isto de forma a incluir nestes processos uma maior criticidade e consciência capazes de desconstruir o processo kafkiano vivenciado pelos jurisdicionados na vida real. Para tanto, urge a necessidade de se propor uma solução capaz de ampliar a humanização do Judiciário através de novas formas de deliberação acompanhadas de critérios mais includentes de operacionalização dos sistemas de automação e inteligência artificial. Para tanto, este processo terá de ser concebido em meio ao equilíbrio entre as tensões do viés econômico que movimenta a marcha do progresso tecnológico e a necessidade democrática de se adequar a velocidade de tais transformações a todos os cidadãos. Somado ao crescente cenário de distanciamento, há também o risco deste processo como um todo associado à judicialização em massa, a qual foi especialmente facilitada pelos novos recursos tecnológicos. Estes já são capazes de permitir o processamento de informações e a elaboração de petições jurídicas em lote, o que pode causar uma ampliação do acesso à justiça de forma deturpada ou, ainda, de forma demasiadamente padronizada, eliminando as especificidades do caso concreto. Empresas que se denominam “Civic Techs” tem promovido a judicialização em massa de questões corriqueiras, especialmente no âmbito consumerista, com o objetivo de mercantilizar questões relacionadas à reparação judicial. Normalmente são start-ups voltadas à proteção de direitos dos consumidores que encorajam a judicialização e, por vezes, oferecem até R$1.000,00 (um mil reais) no momento da contratação pela compra dos direitos futuros indenizatórios. (TORRE, 2021) No meio deste processo de ampliação dos mecanismos virtuais surge o risco de o jurisdicionado, enquanto cidadão que busca o Poder Judiciário, se ver diante de um cenário kafkiano no qual a distopia de uma evolução tecnológica que desconsidera sua condição de indivíduo – e, em especial, as particularidades do caso concreto que vivenciou – seja capaz de desumanizá-lo. O jurisdicionado, então, se vê reduzido a um número ou estatística, seja pelos grandes escritórios de demandas de massa, seja pelo próprio Judiciário, não tendo sequer a garantia de que a narrativa dos fatos ocorridos na realidade da vida será corretamente descrita (ou, ainda, efetivamente lida e apreciada) em suas particularidades no processo judicial. Todo eventual dano moral sofrido corre o risco de ser desumanizado em meio aos algoritmos de um sistema padronizado, no qual o indivíduo se limita a vender seu direito de ação por um preço tabelado em um aplicativo. “O Processo” de Franz Kafka desvenda a sensação de angústia e aflição de um indivíduo oprimido por uma realidade cruel. Realidade esta típica de um Estado de exceção e com um Judiciário condizente, porque incompreensível para o indivíduo comum. Nesta obra, o personagem principal Josef K. tem de se defender de um processo tipicamente inquisitorial no qual sequer sabe efetivamente do que está sendo acusado. Mais que isso: revela-se ao personagem um cenário desesperançoso em que o resultado final dos autos depende muito mais das influências externas do que efetivamente acerca dos fundamentos legais envolvidos com a situação. (REGO, 2014) Assim, apesar de em “O Processo” o personagem principal estar em uma posição de réu em uma demanda da qual não tem qualquer compreensão, não podemos desconsiderar que na atualidade o jurisdicionado, inúmeras vezes, e mesmo quando assume a posição de autor processual, se vê imerso nessa mesma estrutura de dificuldade de compreensão e exercício da racionalidade. O processo da vida real, portanto, para muitos cidadãos se torna impenetrável. Este cenário ocorre não somente pela existência de termos e debatestécnicos de difícil compreensão para o público comum, mas também pela progressiva modernização e virtualização do processo judicial (e consequente distanciamento físico entre os tribunais e as partes) principalmente diante daqueles que não estão incluídos digitalmente. Tanto os indivíduos que não litigam acompanhados de advogado ou defensor nos Juizados Especiais quanto os que são acompanhados por este tipo de profissional, porém em decorrência da cooptação abusiva realizada pelas novas ferramentas tecnológicas, vivem em alguma medida a realidade do processo kafkiano. A questão que desponta é sobre até qual ponto o manejo destas ferramentas de otimização em massa são contaminadas pelo discurso neoliberal das últimas décadas de constituição de um Estado mínimo essencialmente voltado a critérios numéricos e econômicos em detrimento daqueles que não conseguem acompanhar o ritmo das mudanças. É preciso lembrar que a produção de crescimento econômico não se confunde com a produção de democracia (NUSSBAUM, 2015, p. 15). Da mesma forma, a modernização da Justiça desacompanhada do investimento material em qualidade humanística da prestação jurisdicional evidencia a escolha de um viés neoliberal de redução do Estado ao estimular o aprimoramento com foco essencialmente na eficiência estatística da produtividade. Adota-se, assim, um discurso não dito de empobrecimento da complexidade da contingência humana presente em cada processo judicial. O risco é o de que – em meio a tantas automações, inteligências artificiais e estruturações de uma justiça cada vez mais distante do fator humano – o processo ganhe vida própria para se tornar um fim em si mesmo. Tal como “O Processo” de Kafka, estamos diante do risco “do processo pelo processo”, ou seja, um fim em si mesmo.

Downloads

Publicado

2024-12-12