O FENÔMENO DO RACISMO ESTRUTURAL E SEUS REFLEXOS NO RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO REALIZADO DURANTE O INQUÉRITO POLICIAL

UM FOMENTO À SELETIVIDADE PENAL

Autores

  • Renan Soares Torres de Sá
  • Ana Vitória Leandro Souza
  • Lorenna Novaes Ferraz

Resumo

O inquérito policial se consubstancia em procedimento administrativo que tem como principal finalidade fornecer indícios suficientes de autoria e materialidade delitivas quando do cometimento de condutas tipificadas pela nossa legislação penal. Nesse cenário, o reconhecimento fotográfico se mostra como um dos mecanismos à disposição das autoridades policiais para fins de identificar os suspeitos da prática de condutas ilícitas. No entanto, embora seja meio de coleta de indícios corriqueiramente utilizado nas investigações policiais, a legislação pátria é marcada pela ausência de regulamentação específica do reconhecimento fotográfico, sendo utilizado quando da efetivação do procedimento as regras referentes ao reconhecimento pessoal, as quais se encontram dispostas no artigo 226 do Código de Processo Penal, bem como a normativa estabelecida pela Resolução nº 484/2022 do Conselho Nacional de Justiça. No entanto, no Brasil, consoante com os relatórios do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege) publicados em 2020 e 2021, o qual considera dados coletados entre 2012 e 2020, foram constatados, ao menos, cinquenta e oito erros em reconhecimento fotográfico, os quais resultaram em pelo menos noventa prisões ilegais, de modo que 81% dos investigados se tratavam de pessoas negras. O relatório do Condege publicado em 2020, aqui já mencionado, aponta que 86% dos casos em que foi realizado o procedimento de reconhecimento fotográfico no Estado do Rio de Janeiro resultaram em decreto de prisão preventiva, tendo a segregação cautelar dos acusados perdurado entre cinco dias e três anos, em uma realidade onde 80% dos investigados sobre os quais havia informação de raça no respectivo procedimento policial eram qualificados como negros. Dessa forma, parece evidente que a maneira como ocorre o procedimento de reconhecimento fotográfico no Brasil, resultando em prisões equivocadas que, majoritariamente, vitimam pessoas negras, o sistema de persecução penal brasileiro acaba por contribuir para a manutenção da seletividade penal, reforçando a manutenção do racismo estrutural a partir da manutenção de estereótipos ligados à figura do criminoso, os quais são associados a características da população negra. Nesse contexto, a presente pesquisa parte da seguinte problemática: a realidade jurídico-fática brasileira no que tange ao procedimento de reconhecimento fotográfico realizado durante o inquérito policial evidencia o racismo estrutural, contribuindo para a seletividade penal? No intuito de discutir a problemática aqui apresentada, a presente pesquisa tem como objetivo geral analisar a relação existente entre a efetivação do procedimento de reconhecimento fotográfico no inquérito policial brasileiro e o racismo estrutural. Como objetivos específicos, se pretende analisar os dispositivos do Código de Processo Penal sobre reconhecimento fotográfico, sobretudo seu artigo 226, e o inteiro teor da Resolução nº 484, de 2022, do Conselho Nacional de Justiça; perscrutar os relatórios publicados em 2020 e 2021 pelo Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege) sobre o procedimento de reconhecimento fotográfico em delegacias do país; investigar o impacto no sistema de justiça da maneira como o procedimento de reconhecimento fotográfico se efetiva no país a partir da análise das decisões emanadas nos autos do processo nº 0000555-32.2012.8.17.1300, em trâmite perante a Vara Única da Comarca de São João/PE, e do julgamento do REsp 1.996.268, do HC 790.250, do REsp 2.028.533 e do AREsp 2.320.506 pelo Superior Tribunal de Justiça, tudo por meio da documentação disponível nos depósitos virtuais de jurisprudência dos mencionados órgãos judiciais; e se debruçar sobre o Projeto de Lei nº 676/2021, no intuito de se averiguar as mudanças legislativas por ele pretendidas. A metodologia usada nesse projeto de pesquisa é a metodologia qualitativa, com base em fontes bibliográficas como artigos científicos, doutrinas, jornais renomados, Google acadêmico, Scielo, tendo por base materiais publicados entre os anos de 2019 a 2024. A pesquisa se mostra necessária, uma vez que, historicamente, o Brasil foi um dos países que mais retardou o fim da escravatura devido a fatores econômicos (Silva, 2007), o que reverbera nas dinâmicas sociais atuais, onde o racismo se manifesta como um fenômeno que não se limita a comportamentos individuais, mas também se apresenta como verdadeiro “(...) resultado do funcionamento das instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios com base na raça” (Almeida, 2019, p. 26). Nesse cenário, a condução do procedimento de reconhecimento fotográfico, marcado pela elaboração de perguntas sobre as feições e o biótipo de pessoas que cometeram um crime, bem como pela corriqueira exposição de imagens de pessoas negras do sexo masculino (Almeida, 2019, p. 26), acaba se constituindo, ao mesmo tempo, como um reflexo do racismo estrutural – uma vez que os profissionais que conduzem a investigação acabam levando às vítimas, ainda abaladas emocionalmente pelo trauma causado pela prática criminosa, a descreverem fenótipos de homens negros, altos e fortes  (Almeida, 2019, p. 26) – e um instrumento de manutenção das pilastras racistas que alicerçam a sociedade pátria, a partir do encarceramento em massa da população negra, fortalecendo a construção social que liga a figura do homem preto a cenários de criminalidade. Não se busca, ainda, descredibilizar o procedimento de reconhecimento fotográfico, o qual pode se mostrar útil à conclusão da persecução penal, mas, sim, questionar seu uso inadequado e desprovido de protocolos específicos e como isso tem causado imputações injustas e prisões ilegais. Nesse cenário, destacam-se exemplos como o de Carlos Edmilson da Silva, preso aos 24 anos em Barueri ao ser apontado pela investigação como responsável por estuprar dez mulheres na cidade e na vizinha Osasco entre 2010 e 2012, tendo a autoria delitiva sido procedimentalmente definida a partir do reconhecimento fotográfico de Carlos Edmilson, em procedimento de persecução penal que acabou resultando em sua condenação a pena de 137 anos, 9 meses e 28 dias de prisão em regime fechado. Ele foi inocentado doze anos depois de sua condenação após exames de DNA realizados pela Superintendência da Polícia Técnico-Científica de São Paulo apontarem o verdadeiro estuprador que atacou as vítimas (Portal G1, 2024). É imperioso citar, ainda, para fins de verificação da realidade fática e regional da qual a presente pesquisa se encontra inserida, o caso descrito no processo criminal de nº 0000555-32.2012.8.17.1300, em trâmite perante a Vara Única da Comarca de São João/PE, onde Romildo Ferreira de Andrade e Antônio Flávio de França foram acusados do cometimento dos delitos descritos nos artigos 157, § 2º, I e II c/c art. 255, parágrafo único, ambos do Código Penal, por terem, supostamente, subtraído, mediante grave ameaça exercida através de arma de fogo, uma carga de cigarros avaliada em R$ 28.689,83, o que teria ocorrido em 02/08/2011. Quando da ocasião da investigação, foram apresentadas aos funcionários da empresa roubada que estavam no veículo assaltado fotografias de reduzida nitidez, a partir das quais foram os indivíduos aqui mencionados apontados como autores do fato, gerando a decretação de prisão preventiva dos mesmos. Contudo, durante a tramitação processual, se verificou que inexistiam outros elementos, além do reconhecimento fotográfico, que ligassem os acusados ao crime em questão, tendo, inclusive, as testemunhas ouvidas em juízo demonstrado incerteza acerca da identificação dos acusados, o que gerou a absolvição dos mesmos por sentença datada de 14/10/2021 (TJPE, 2021). Assim, é crucial que o procedimento de reconhecimento fotográfico seja regulado e padronizado, respeitando os direitos fundamentais do investigado e minimizando, assim, a presença do reflexo do racismo estrutural no inquérito policial brasileiro. Sobre o tema, inclusive, a alteração da legislação atual a partir do Projeto de Lei nº 676/2021, que pretende alterar o Capítulo VII do Código de Processo Penal, se mostra como uma possibilidade de mudança positiva no inquérito policial, objetivando o projeto que as vítimas dos delitos, ao realizarem o procedimento de reconhecimento fotográfico, descrevessem a figura do autor do fato a partir de um relato livre e com perguntas abertas, fazendo o veto de perguntas que possam induzir uma resposta direcionada a fenótipos específicos. Pretende, ainda, o referido projeto de lei que devem ser formuladas perguntas sobre a distância aproximada a que estava do suspeito, o tempo aproximado durante o qual visualizou o rosto do suspeito, as condições de visibilidade e de iluminação no local e a distância aproximada a que estava do fato.

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Publicado

2024-12-12