NEUTRALIDADE SUBSTANTIVA E A NECESSIDADE DE ACOMODAÇÕES RELIGIOSAS
Resumo
Dentre as diversas características da lei, a generalidade dos destinatários é um traço marcante. Afinal, as leis são promulgadas para uma comunidade e não para um indivíduo (McCORMACK, 1997).[1] O comando da lei é abstrato, dirigido indistintamente a todos os cidadãos, sendo vedado o endereçamento a pessoas definidas (CONÇALVES, 2008). Ao mesmo tempo em que decorre de sua própria natureza, a generalidade da lei expressa, em princípio, um preceito fundamental de isonomia, porquanto todos aqueles que se encontram em situações equivalentes receberão tratamento igual. Contudo, há situações em que a simples aplicação de uma lei genérica, tida como neutra em relação às religiões, acaba por impingir, na prática, severas limitações à determinados grupos religiosos, notadamente os minoritários, muitas vezes sequer imaginadas pelo legislador. Diante disso, faz-se necessário examinar, sem a pretensão de esgotar o tema, em que medida normas de aplicabilidade geral (ou seja, destinada a todas as pessoas indistintamente) podem, legitimamente, restringir o exercício do direito à liberdade religiosa. Além disso, mostra-se fundamental a identificação de critérios a serem observados pelo agente público para a eventual concessão de acomodação das práticas religiosas indevidamente atingidas. O objetivo do trabalho é identificar em que medida normas de aplicabilidade geral podem restringir o exercício do direito fundamental à liberdade religiosa. Objetiva-se verificar, ainda, se há ou não a necessidade de acomodar as práticas religiosamente motivadas, notadamente dos grupos minoritários, ante prescrições de ordem geral. O estudo visa examinar a viabilidade de criação, pela via judicial, de exceções às normas de aplicabilidade geral que, indiretamente, restringem severamente práticas religiosas inofensivas. Além disso, pretende-se traçar parâmetros para a análise de pedidos de acomodação das práticas religiosas quando a limitação estatal resultar na supressão do exercício do direito fundamental à liberdade religiosa, visando combater restrições arbitrárias e desproporcionais. A presente pesquisa é de natureza aplicada, isto é, objetiva gerar conhecimentos para aplicação prática, dirigida à identificação de parâmetros para identificar restrições indevidas ao pleno exercício da liberdade religiosa, notadamente quando advindas de leis de aplicabilidade geral. Para tal mister, far-se-á uma ampla revisão bibliográfica, coleta e análise crítica da jurisprudência sobre pedido de acomodações religiosas em face de leis que restringiram desproporcionalmente o direito à liberdade religiosa. Além disso, cotejar-se-á os fundamentos jurisprudenciais com o disposto nos diplomas nacionais e internacionais pertinentes, procurando-se identificar critérios razoáveis e constitucionalmente admitidos de ingerência da Administração Pública sobre a autonomia da vontade privada no exercício do culto religioso, de modo a contribuir no combate às discriminações religiosas. Verifica-se ao longo do trabalho que uma lei que pareça, à primeira vista do legislador, religiosamente inócua, pode não o ser em seus resultados, por vezes “proibindo algo que a religião exige ou exigindo algo que a religião proíbe”.[2] A partir do exame da questão pela disparate impact doctrine (teoria do impacto desproporcional), identificou-se que impedir ou onerar indevidamente, ainda que de maneira indireta, as práticas religiosas incomuns ou impopulares, conduz à ilegítima obliteração da pluralidade de confissões e de crenças genuínas, indispensáveis à vitalidade de uma comunidade constitucional inclusiva, marcada pelo multiculturalismo mundividencial. Constatou-se, também, que o princípio da não confessionalidade do Estado e o dever de neutralidade estatal em relação à matéria religiosa impede, primeiramente, a edição de leis que tenham como objetivo direto a perseguição ou discriminação de práticas religiosas. Outrossim, impõe que o governo, mesmo diante de leis tidas como neutras, avalie a possibilidade de acomodar as diferentes práticas religiosas. Além disso, observou-se que, sob a perspectiva da neutralidade formal, a regra que autoriza a objeção de consciência como recusa do serviço militar obrigatório - quer seja por motivo religioso, filosófico ou político -, poderia ser considerada inconstitucional. Nota-se, portanto, a necessidade de observância do que pode ser chamado de neutralidade substantiva, que impõe ao Estado o dever de buscar acomodar as diferentes manifestações religiosas. Conforme, em termos precisos, ressalta Robert AUDI (2012), “neutralidade governamental não implica indiferença governamental”. Ignorar os efeitos práticos das normas pode levar o Estado, por linhas transversas, a um tratamento discriminatório, frequentemente contra pessoas e grupos de menor expressão social e os recém-estabelecidos. A acomodação razoável, portanto, reflete o verdadeiro dever de neutralidade estatal diante das diferentes crenças religiosas, sem que isso represente um envolvimento de religiosos com instituições seculares.[3] Diante do delineamento constitucional e convencional da matéria, tem-se que o Estado não pode ser indiferente com as consequências práticas de seus atos – sejam eles administrativos, legislativos ou judiciários. Se esta preocupação já é uma verdade praticamente incontestável no âmbito da gestão administrativa - plasmada no princípio da eficiência -, quem dirá no domínio da proteção dos direitos fundamentais. Vale dizer, se a consideração dos resultados da atuação estatal já é imperiosa no campo do gerenciamento de recursos públicos, a fortiori quando a ação estatal interferir sobre os direitos fundamentais, os quais são carecedores de maior proteção constitucional. Revela-se inadmissível, portanto, a ideia de um Estado insensível com os resultados materiais de suas ações, numa atuação alheia a própria realidade da sociedade que regula. Por fim, constatou-se que a restrição à liberdade religiosa sujeita ao controle judicial, portanto, deve ser de uma intensidade que ultrapasse o razoável e não meros inconvenientes naturais da vida em sociedade. Ainda que oriunda de normas genericamente aplicadas, a interferência estatal deve resultar num impacto desproporcional sobre o exercício da liberdade religiosa.
[1] Tal lição, aliás, já era professada por Ulpiano, ao afirmar que “Iura non in singulas personas, sed generaliter constituuntur” (“As regras não são estabelecidas para o indivíduo, mas para todos”). (Digesto I, 3, 8).
[2] Tradução nossa. Church of Lukumi Babalu Aye, Inc. v. City of Hialeah (n. 91-948) 508 U.S. 520. (SOUTER, J., votando com o relator). Vista a questão sob o aspecto econômico, um regulamento não é neutro se, qualquer que seja seu escopo ou suas intenções, imponha arbitrariamente maiores custos aos religiosos do que às atividades não-religiosas comparáveis. (McCONNELL,1989).
[3] Sherbert v. Verner, 374 U. S. 398, 374 U. S. 409 (1963).
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