A INTERSECCIONALIDADE E A PEC 45/2023 NO CONTEXTO DO ENCARCERAMENTO FEMININO
Resumo
A temática sobre a qual o presente trabalho se debruçará diz respeito à análise interseccional no que tange à discussão da Proposta de Emenda à Constituição 45/2023, que visa tornar crime a posse e o porte de qualquer quantidade de drogas ilícitas. Diante disso, o recorte terá como foco o cenário de encarceramento de mulheres negras no Brasil, analisando a interseccionalidade sobre a política de guerra às drogas e sua relação com o aumento exponencial dessas mulheres a partir das especificidades de gênero, raça, classe e território.
Esta pesquisa tem como objetivo mais amplo a produção de um material consistente em dados e em referencial teórico para se compreender os impactos da Proposta de Emenda à Constituição 45/23, conhecida como PEC das Drogas, que têm como objetivo criminalizar o porte e a posse de drogas ilícitas, independentemente da quantidade. Nessa perspectiva, também almeja-se observar esses desdobramentos, na vida das mulheres que são, em sua maioria, jovens, negras, mães, provedoras do lar, de baixa escolaridade.
O principal objetivo desta empreitada é a análise dos impactos da referida PEC na vida das mulheres negras, que, por conta da vulnerabilidade social, serão as maiores vítimas deste tipo penal.
Este trabalho possui uma abordagem qualitativa, partindo de uma pesquisa teórico-bibliográfica relacionada ao tema com o intuito de aprofundar a discussão a respeito da seletividade do sistema penal sob uma perspectiva interseccional das opressões enfrentadas pelas mulheres negras. Nesse sentido, foram consultados os dados quantitativos para análise da população carcerária feminina disponibilizados pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen de 2018, bem como como os dados sistematizados das Organizações e Associações de Direitos Humanos.
Cumpre salientar que a interseccionalidade constitui ferramenta analítica utilizada para a análise dos estudos relacionados à raça e ao gênero, especialmente no contexto do feminismo negro, com o intuito de esclarecer e revelar as desigualdades sociais. Dessa forma, não se busca estabelecer uma hierarquia de vulnerabilidades, mas sim examinar as diversas formas de opressão vivenciadas pelas mulheres negras.
Neste contexto, a referida PEC, apresentada por um grupo de parlamentares, vem na contramão da discussão atual de políticas de drogas, vivenciadas no Brasil, em sendo aprovada acarretará em mudanças significativas no aparato jurídico brasileiro. Isso, porque o referido texto traz em seus dispositivos a criminalização de qualquer tipo de drogas ilícitas, em dissonância com a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário (RE) 635659 sobre a descriminalização do porte de maconha.
É relevante destacar que o sistema prisional brasileiro é profundamente marcado por desigualdades raciais e de gênero. De acordo com os dados do Infopen Mulheres (2018), a maioria das mulheres privadas de liberdade é negra (62% pretas ou pardas), não concluíram o ensino fundamental (66%) e tem até 29 anos de idade (50%). Outro dado que merece destaque é que mais da metade (56%) das prisões de mulheres estão relacionadas aos crimes de tráfico de drogas. O perfil dessas mulheres evidencia a dupla penalização que enfrentam, tanto em razão de seu gênero quanto de sua cor. Segundo a pesquisadora em antropologia, política criminal e relações raciais Juliana Borges (2019, p. 62), “o encarceramento segue como uma engrenagem de profunda manutenção das desigualdades baseadas na hierarquia racial e tendo no segmento juvenil seu principal alvo”.
As implicações, como se pode compreender, dizem respeito também ao envolvimento maior das mulheres em delitos relacionados ao tráfico de drogas. Como pontua Juliana Borges (2019, p. 65), “o tráfico é a primeira das tipificações para o encarceramento”. Destaca-se, ainda, que a Lei de drogas (Lei nº 11.343/2006), segundo esclarece a professora e doutora em Direito Penal Luciana Boiteux (2009, p. 21), estabelece “tipos abertos e penas desproporcionais, pois concede amplos poderes ao policial, tanto para optar entre a tipificação do uso e do tráfico, como ao não diferenciar entre as diversas categorias de comerciantes de drogas.” Dessa forma, torna-se urgente a necessidade da criar parâmetros legais que estabeleçam de maneira clara a distinção entre o porte e o tráfico de drogas.
Ademais, a Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) tem sido criticada por sua aplicação discriminatória, que frequentemente resulta em penas severas para mulheres envolvidas em pequenos delitos relacionados ao tráfico, muitas vezes como resultado de coerção dos parceiros ou por necessidade econômica. Em razão disso, a ausência de uma distinção clara entre usuários e traficantes agrava o fenômeno do encarceramento em massa desse grupo, evidenciando, assim, o caráter racista e sexista do aparato estatal.
Desse modo, a Proposta de Emenda Constitucional, ao reforçar a criminalização da posse e do porte de drogas, independentemente da quantidade, e a não consideração do uso recreativo de maconha ou qualquer outro meio de droga medicinal, pode agravar ainda mais a situação das mulheres negras. Vejamos algumas das implicações interseccionais dessa proposta: a) aumento do encarceramento: a criminalização rigorosa prevista pela PEC pode levar a um aumento significativo no número de mulheres negras encarceradas. Muitas dessas mulheres já enfrentam uma dupla penalização devido à sua raça e gênero, sendo desproporcionalmente visadas pelas forças de segurança e pelo sistema judicial como infratoras da lei em potencial; b) marginalização e vulnerabilidade: a prisão de mulheres negras, que muitas vezes são responsáveis pelo sustento de suas famílias, pode levar à desintegração familiar e a um ciclo contínuo de pobreza e vulnerabilidade. A PEC, ao não diferenciar adequadamente entre usuários e traficantes, pode punir mulheres que estão em situações de extrema necessidade e que, por falta de oportunidades, acabam se envolvendo ou sendo envolvida no contexto de drogas; c) estigmatização e reincidência: o estigma associado ao encarceramento pode dificultar a reintegração dessas mulheres na sociedade. Sem acesso a programas de reabilitação adequados e oportunidades de emprego, a reincidência torna-se uma realidade comum. A PEC, ao enfatizar a punição em vez da reabilitação, pode perpetuar esse ciclo; d) impacto psicológico e social: a prisão tem um efeito psicológico profundo, especialmente para mulheres negras que já enfrentam múltiplas formas de discriminação. A separação de seus filhos e a perda do contato com suas comunidades exacerbam esses efeitos, levando a traumas duradouros.
Portanto, depreende-se que o texto descrito na PEC 45/2023 é perigoso e por sua vez pode ser considerado objeto de mais opressões para um grupo social historicamente vulnerável. Observa-se que a legislação brasileira e a jurisprudência atual vêm se construindo no sentido contrário à Emenda Constitucional proposta. Diante disso, a aprovação e a incorporação da Emenda ao ordenamento jurídico é um retrocesso no que tange a políticas públicas antiproibicionistas.
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