LEI 10.639/03 COMO PRÁTICA
DIÁLOGOS COM PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS CRÍTICAS
Resumo
Ao analisarmos as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Brasil, 2004), observamos que a Lei 10.639/03 vai além de garantir vagas para a população negra nas escolas, também enfatiza a valorização da história e cultura afro-brasileira, visando reparar danos históricos que perduram há mais de cinco séculos e que afetam diretamente a identidade e os direitos dessa população (Brasil, 2004). A lei busca “reparar” os efeitos de um processo de desvalorização enfrentado por essa população durante o período colonial, tendo em vista que os reflexos desse período ainda são sentidos e reverberam na sociedade contemporânea, incluindo o ambiente escolar. Para promover mudanças na sociedade, é essencial transformar os espaços de formação. Assim, esta pesquisa tem como objetivo estabelecer diálogos entre a efetivação da lei com as pedagogias interculturais e decoloniais.
Retornando ao passado, encontramos um processo que visava silenciar e eliminar outras experiências e conhecimentos, destacando aqueles pertencentes aos colonizadores. Essa abordagem eurocêntrica buscava naturalizar suas próprias experiências, estabelecendo-as como inquestionáveis e dadas, conforme destacado por Aníbal Quijano (2007). Consequentemente, certos conhecimentos foram canonizados como verdades únicas, silenciando qualquer tentativa de questionamento ou perspectivas alternativas. Outra consequência dessa naturalização dos conhecimentos eurocêntricos foi a tentativa de borrar a percepção de que tais ações foram brutais e realizadas durante o período colonial, promovendo a ideia de que ocorreram de maneira natural e inevitável. Nelson Maldonado-Torres (2007) aponta que uma das técnicas utilizadas foi a desclassificação epistêmica, que se tornou um instrumento para a negação do ser, encapsulada na expressão “Não pensam, logo não são”. Na modernidade, essa lógica se traduz na equivalência entre não pensar e não existir.
Ramón Grosfoguel (2016) reforça que os idolatrismo vividos hoje perante essas epistemologias eurocêntricas e universalizantes foi construída e solidificada perante o extermínio tanto físico quanto simbólico de sujeitos e saber outros. Walter Mignolo (2008) aponta que para ocorrer um processo de decolonização é preciso um desprendimento com as racionalidades que partem do grego, latim e das seis línguas imperiais europeias (italiano, espanhol, português, inglês, francês e alemão). Necessitando assim de uma abertura para as possibilidades que foram subjugadas como primitivas e inferiores pela perspectiva imperial de inferiorizar conhecimentos outros. Sendo assim, a decolonialidade se apresenta como uma perspectiva que não se dobra diante da lógica da colonialidade nem se deixa levar pelos encantos criados pela modernidade.
Tendo em vista isso, é preciso olhar para as salas de aula, e todo o cotidiano escolar, em busca de compreender em que momentos e entremeios o pensamento colonial ainda se faz presente. Vera Candau e Kelly Russo (2010) destacam que a educação escolar desempenhou um papel crucial na disseminação e consolidação de uma cultura eurocêntrica, silenciando ou invisibilizando vozes, experiências, conhecimentos e crenças alternativas. Candau (2020) observa que os processos educacionais continuam a reproduzir a lógica da colonialidade, promovendo a homogeneização dos sujeitos e validando apenas o conhecimento derivado do referencial da modernidade europeia.
O processo de reconhecer e nomear, demonstrando assim as formas nas quais a colonialidade se faz presente no cotidiano escolar, é um dos caminhos para uma educação intercultural crítica (Candau, 2020). Catherine Walsh (2006) argumenta que a interculturalidade é fundamental para a (re)construção de um pensamento crítico alternativo por três razões principais: primeiro, porque é vivida e pensada a partir da experiência da colonialidade; segundo, porque é precursora de pensamentos que não derivam de legados eurocêntricos ou da modernidade; e terceiro, porque sua origem está no Sul, contrastando com a geopolítica dominante centrada no Norte global. A interculturalidade crítica promove sociedades que reconhecem e incorporam suas diferenças na democracia, estabelecendo relações igualitárias entre diversos grupos e possibilitando o empoderamento daqueles que foram inferiorizados (Candau, 2020). Walsh (2007) enfatiza que a interculturalidade crítica está intrinsecamente ligada à perspectiva decolonial, sendo um projeto intelectual e político que visa construir novos modos de poder, saber e ser, desafiando o eurocentrismo e afirmando a pluralidade epistêmica.
Walsh (2009) argumenta que as pedagogias devem confrontar o mito racista que originou a modernidade e o monólogo da razão ocidental. Essas pedagogias devem transgredir e agir contra a negação ontológica, epistêmica e espiritual que sustenta a colonialidade. Importante destacar que essas pedagogias não são responsabilidade apenas dos silenciados. A Lei 10.639/03 enfatiza que o estudo da história e cultura afro-brasileira e africana é relevante para todos os brasileiros, promovendo a educação em uma sociedade multicultural e pluriétnica, essencial para a construção de uma nação democrática (Brasil, 2013).
As políticas educacionais devem promover a inclusão, permanência e sucesso escolar, valorizando as identidades culturais negras. Isso inclui incorporar nos currículos e materiais escolares elementos das culturas negras, processos de resistência e contribuições históricas dos grupos negros (Candau; Russo, 2010). A valorização da ancestralidade africana é fundamental, especialmente na luta pelo reconhecimento de territórios e novos modelos de desenvolvimento. Os espaços de ensino são cruciais para eliminar preconceitos, racismo e discriminação, permitindo que as crianças compreendam e valorizem a importância dos diferentes grupos etnicorraciais na cultura e história brasileira. A formação dos profissionais deve ser baseada em valores éticos que não tolerem atitudes racistas e preconceituosas (Brasil, 2006).
Vera Candau (2020) observa que, apesar de alguns avanços, estudos indicam a dificuldade de superar a visão pontual com que essa temática é abordada nas escolas, sendo tratada de forma isolada e em um único momento. É necessário destacar que os dispositivos legais focam nas culturas afro-brasileiras e indígenas, que foram negadas e subalternizadas por uma cultura escolar colonizadora. No entanto, há um crescente foco na incorporação de debates sobre a branquitude, que foi imposta como norma e precisa ser refletida nos currículos escolares.
Durante a pesquisa, buscamos estabelecer um diálogo entre a Lei 10.639/03 e pedagogias interculturais e decoloniais. Para isso, analisamos como o processo colonial ainda interfere na sociedade atual, perpetuando a colonialidade. Dialogamos com Aníbal Quijano e Nelson Maldonado-Torres para entender a hierarquização dos conhecimentos e a naturalização das influências europeias. Em seguida, exploramos as ideias de Vera Candau e Catherine Walsh sobre decolonialidade e educação intercultural crítica. Destacamos a necessidade de questionar o eurocentrismo de forma contínua, afirmando a pluralidade epistêmica presente na sociedade. Reforçamos que a história não é linear e deve incluir diversas epistemologias, promovendo uma (re)construção de conhecimentos.
A Lei 10.639/03, embora não forneça detalhes extensivos sobre sua implementação, apresenta dispositivos que visam transformar a legislação em prática efetiva. Esses dispositivos dialogam com a educação intercultural crítica e práticas decoloniais, enfatizando que a responsabilidade por uma educação inclusiva e diversificada não recai apenas sobre aqueles que foram historicamente marginalizados, mas sobre todos os envolvidos nos processos educacionais. É essencial transformar a escola em um espaço de diálogo aberto, onde todos se sintam confortáveis e incentivados a participar. Além disso, destaca-se a necessidade de que os educadores adotem uma postura antirracista e apoiem ativamente essas lutas. Conforme Arroyo (2012) afirma, para diferentes sujeitos, são necessárias diferentes pedagogias.
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